21.5.04

Hapiness

[Porque a velhice pode ser muito solitária...e triste também]

...um texto que encontrei aqui...

"Passo a vida aqui sozinha, a ver-vos chegar através do postigo, atenta às campainhas dos comboios e à badaladas do relógio de parede, tic tac tic tac tic tac tic tac, em ânsias por causa do arroz no forno e do molho do guisado, que se coalha já não presta para nada e depois não tenho outro remédio senão deitá-lo às galinhas, juntamente com folhas de couve e hortaliça cortadas aos bocados. Os comboios nunca vêm à tabela, um ou dois minutos antes ou depois da hora, mas nunca àquela anunciada pela voz de homem que irrompe em eco pela estação e à qual já me habituei depois de tantos e tantos anos a ouvi-la sem resposta.
(Vai dar entrada na linha número dois o comboio com destino a Lisboa-Santa Apolónia, com paragem em todas as estações e apeadeiros.)

A minha filha prometeu-me que aparecia aí hoje para me trazer as receitas do médico e arranjar-me a bainha de uma saia. Garante-me que estou muito doente e preciso de tomar aqueles comprimidos todos, amarelo, branco, laranja e rosa, mas acho que ela julga mesmo que estou a ficar maluca, porque quando fala acerca de mim às outras pessoas desvia a cara para o lado, por modo a que não a fite de frente, e começa a segredar baixinho, a tapar a boca com a palma da mão, como se estivesse a falar ao telefone.

(A minha mãe não se lembrava de quem eu era quando aqui cheguei.)

Fico numa pilha de nervos sempre que estou à espera dela, aperto o terço com força nos dedos e rezo a Nossa Senhora para que a deixe despachar-se em paz e o mais rápido possível, antes que a carne esfrie na panela e tenha de aquecê-la no bico do fogão com o lume a soprar no mínimo.

(Hoje sonhei que tinha levado a minha mãe à praia e uma onda a tinha engolido, coitadinha.)

A minha filha é telefonista em Mem-Martins e vive com o meu neto mais velho, o qual já não vejo há uma data de tempo, às vezes até me custa um pedaço lembrar-me da cara dele, não fossem as fotografias em parada em cima do psiché, as quais me fazem companhia no intervalo entre a missa e a novela, além de me recordarem em silêncio que os sorrisos existem quando dou por mim a pensar maluqueiras junto ao aquecedor. O meu neto é aquele ali, de fato e gravata, com o cabelo arrepiado, ao lado do meu genro barbudo, formou-se doutor faz agora um mês, parece que sabe tratar malucos, embora não acredite que possa fazer alguma coisa por mim, senão de certeza que já tinha vindo aí visitar-me para prescrever-me uma data de ampolas e injecções que fizessem bem à cabeça. Praticamente, fui eu que o criei, com muito custo e sopa de cenoura e feijão verde, um calmeirão mal agradecido que hoje só aparece aqui em casa se a mãe o obrigar, puxando-o pelo braço como se fosse um miúdo pequeno.

(Se faz favor telefona à tua avó a agradecer-lhe as peúgas.)

O pior é quando ninguém surge do outro lado da janela. Quando o vozeirão antecede o último comboio da noite e não me restam novelas na TVI, padres a pregarem no ecrã ou o programa do Armando José aos domingos à noitinha. Quanto tal acontece, corro para a cozinha a bater as socas no soalho, levanto a tampa do tacho e vêm-me as lágrimas aos olhos ao contemplar aquela pasta gordurosa que cobre o naco do lombo, depois do trabalho todo que tive a temperá-lo e do mal que me faz aos ossos abrir a arca congeladora para tirar a carne de lá de dentro."

Miguel Marques, 25 anos, Lisboa




























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