Um livro
Lembro-me de ser pequena, subir as escadas do prédio a correr e chegar ao último andar, onde morava a minha tia. Batia à porta e perguntava com a voz ainda cansada: "Tia, posso ficar aqui a ler aquele livro?"
Entrava no quarto do meu primo, retirava o livro da prateleira e ficava a lê-lo sentada na alcatifa.
O que mais me apaixonava eram as descrições com as palavras cheias de luz. Lia-as e relia-as vezes sem conta; na minha cabeça imaginava todos esses cenários e sei que muitas vezes desejei ser a Isabel, viver naquela casa e ter aquele jardim enorme só para mim.
(...)
"Isabel conhecia bem todas essas coisas maravilhosas. Cada ano repetia de novo as quatro estações. Era a Primavera que enchia as árvores de leves folhagens verdes, e espalhava nos campos a multidão das papoilas. Então as andorinhas voltavam e tudo se enchia de flores que baloiçavam docemente nas brisas transparentes. Depois o Verão chegava, os dias cresciam, o ar povoava-se de perfumes, as abelhas zumbiam em roda dos cachos de glicÃnias. Rosas, narcisos, cravos e túlipas desabrochavam nos canteiros.
(...)
Então começava o Outono. Os dias ficavam mais curtos e mais doirados, as vinhas eram vindimadas, dos castanheiros caÃam os primeiros ouriços verdes, nos jardins havia dálias e crisântemos, o chão cobria-se de flores amarelas e secas que se desprendiam uma a uma dos altos galjhos das árvores e tombavam lentamente dando viltas no ar.
(...)
Naquela casa tudo era enorme: as portas, as janelas, a cozinha, a copa, os quartos, as salas, as escadas, os corredores.
Mas a maior divisão da casa era o grande átrio onde no Natal se armava o pinheiro. À roda desse átrio ficavam as salas: a sala de jantar, com a sua mesa interminável, a sala de estar onde se tomava o chá nas tardes de Inverno, a sala do piano onde Isabel experimentava um por um o som misterioso das teclas brancas e pretas, a biblioteca com as estantes cheias de livros de capas duras com sombrios desenhos doirados e com uma grande mesa onde estava pousado o globo do mundo."
(...)
Sophia de Mello Breyner
in A Floresta
Entrava no quarto do meu primo, retirava o livro da prateleira e ficava a lê-lo sentada na alcatifa.
O que mais me apaixonava eram as descrições com as palavras cheias de luz. Lia-as e relia-as vezes sem conta; na minha cabeça imaginava todos esses cenários e sei que muitas vezes desejei ser a Isabel, viver naquela casa e ter aquele jardim enorme só para mim.
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"Isabel conhecia bem todas essas coisas maravilhosas. Cada ano repetia de novo as quatro estações. Era a Primavera que enchia as árvores de leves folhagens verdes, e espalhava nos campos a multidão das papoilas. Então as andorinhas voltavam e tudo se enchia de flores que baloiçavam docemente nas brisas transparentes. Depois o Verão chegava, os dias cresciam, o ar povoava-se de perfumes, as abelhas zumbiam em roda dos cachos de glicÃnias. Rosas, narcisos, cravos e túlipas desabrochavam nos canteiros.
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Então começava o Outono. Os dias ficavam mais curtos e mais doirados, as vinhas eram vindimadas, dos castanheiros caÃam os primeiros ouriços verdes, nos jardins havia dálias e crisântemos, o chão cobria-se de flores amarelas e secas que se desprendiam uma a uma dos altos galjhos das árvores e tombavam lentamente dando viltas no ar.
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Naquela casa tudo era enorme: as portas, as janelas, a cozinha, a copa, os quartos, as salas, as escadas, os corredores.
Mas a maior divisão da casa era o grande átrio onde no Natal se armava o pinheiro. À roda desse átrio ficavam as salas: a sala de jantar, com a sua mesa interminável, a sala de estar onde se tomava o chá nas tardes de Inverno, a sala do piano onde Isabel experimentava um por um o som misterioso das teclas brancas e pretas, a biblioteca com as estantes cheias de livros de capas duras com sombrios desenhos doirados e com uma grande mesa onde estava pousado o globo do mundo."
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Sophia de Mello Breyner
in A Floresta
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