Como se o orvalho te tivesse beijado
(…)
Há quanto tempo deixaste de gostar de mim, há quanto tempo isto, deitas-te primeiro do que eu, acordas por um segundo quando chego à cama
- Importas-te de apagar a luz?
Sumida na almofada de costas para mim, dispo-me na claridade dos números do despertador, o colcha vibra acordando-te de novo
- Meu Deus
encontro de manhã os meus cereais numa bandeja e o apartamento vazio, um resto de gostas na cortina do chuveiro, a tua escova de dentes húmida ao lado da minha escova de dentes seca, a tua ausência tão presente na revista de moda esquecida no sofá, a tigela dos teus cereais no lava-loiças com a colher lá dentro, cheia até meio de água esbranquiçada, uma franja de tapete que um dos teus saltos descoseu, o colar mexicano
mexicano?
No tampo da cómoda, que roupa terás hoje, que penteado, que sapatos, com quem vais almoçar, se peço à minha secretária para falar com a tua a senhora doutora saiu ou se não saiu
- Diz depressa que tenho imenso trabalho
de forma que não sei de que é que estou à espera. Já com as chaves do automóvel na mão fico diante da casa de banho a observar as gotas na cortina do chuveiro e a imaginar-te saindo do duche coma toalha maior à cintura e a mais pequena na cabeça, escorrendo lagrimazinhas de fumo como se o orvalho te tivesse beijado. Imagino os teus pés nos azulejos, as tuas costas, os teus ombros, instalo-me ao volante contigo nua ao lado e a pouco e pouco, à medida que a garagem da empresa se aproxima, uma paz, um contentamento, uma exaltação de namorado. Tenho a tua fotografia aqui na estante dos livros, junto à medalha do torneio de ténis e à carta emoldurada do ministro, uma fotografia de há cinco anos se tanto, de óculos escuros, na praia, a acenares para mim. Costumávamos cear na varanda a afastar os mosquitos, dúzias de lanternas de barcos acendiam-se no mar. Talvez fôssemos felizes nesse tempo. Fomos de certeza felizes porque as paredes do coração eram tão finas que se podia escutar do outro lado.
António Lobo Antunes, in Segundo Livro de Crónicas, 2002
Há quanto tempo deixaste de gostar de mim, há quanto tempo isto, deitas-te primeiro do que eu, acordas por um segundo quando chego à cama
- Importas-te de apagar a luz?
Sumida na almofada de costas para mim, dispo-me na claridade dos números do despertador, o colcha vibra acordando-te de novo
- Meu Deus
encontro de manhã os meus cereais numa bandeja e o apartamento vazio, um resto de gostas na cortina do chuveiro, a tua escova de dentes húmida ao lado da minha escova de dentes seca, a tua ausência tão presente na revista de moda esquecida no sofá, a tigela dos teus cereais no lava-loiças com a colher lá dentro, cheia até meio de água esbranquiçada, uma franja de tapete que um dos teus saltos descoseu, o colar mexicano
mexicano?
No tampo da cómoda, que roupa terás hoje, que penteado, que sapatos, com quem vais almoçar, se peço à minha secretária para falar com a tua a senhora doutora saiu ou se não saiu
- Diz depressa que tenho imenso trabalho
de forma que não sei de que é que estou à espera. Já com as chaves do automóvel na mão fico diante da casa de banho a observar as gotas na cortina do chuveiro e a imaginar-te saindo do duche coma toalha maior à cintura e a mais pequena na cabeça, escorrendo lagrimazinhas de fumo como se o orvalho te tivesse beijado. Imagino os teus pés nos azulejos, as tuas costas, os teus ombros, instalo-me ao volante contigo nua ao lado e a pouco e pouco, à medida que a garagem da empresa se aproxima, uma paz, um contentamento, uma exaltação de namorado. Tenho a tua fotografia aqui na estante dos livros, junto à medalha do torneio de ténis e à carta emoldurada do ministro, uma fotografia de há cinco anos se tanto, de óculos escuros, na praia, a acenares para mim. Costumávamos cear na varanda a afastar os mosquitos, dúzias de lanternas de barcos acendiam-se no mar. Talvez fôssemos felizes nesse tempo. Fomos de certeza felizes porque as paredes do coração eram tão finas que se podia escutar do outro lado.
António Lobo Antunes, in Segundo Livro de Crónicas, 2002
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